Você é daquelas pessoas que acreditam que nós fazemos o nosso destino, que somos nós que o escolhemos? Pensa que é o herói da sua história, a personagem principal do livro da sua vida? Então esta história vai fazer de si a personagem principal e mesmo que seja daqueles que acreditam que o destino está marcado, arrisque-se e seja também a personagem desta história. Vista-se e pegue nas chaves do carro para conduzir esta história e siga o caminho que entender.
O despertador tocou. Abriu os olhos lentamente e espreitou as horas no relógio. É hora de se levantar. Abre a janela e devagar os raios de sol entram no seu quarto obrigando-o a abrir os olhos de vez e acordar um pouco mais. Depois do ritual matinal da higiene diária, de enfiar à pressão a roupa que escolheu, é hora do ritual do café da manhã. Finalmente despertou de vez. Sai de casa, tranca-a e retira as chaves do carro do bolso do casaco. No seu caminho cruza-se o gato preto da vizinha, que você não pisa por pouco. Entra no carro e liga a rádio para lhe fazer companhia. O locutor tenta animá-lo tocando músicas de ritmo alegre. O caminho é sempre o mesmo, você já o conhece muito bem. São já alguns anos a percorrê-lo. Por isso, o rádio acaba por lhe cortar a monotonia do percurso habitual. O que não estava previsto eram aquelas obras que o obrigam a ficar parado mais tempo do que estava a contar. Finalmente consegue avançar, mas já está mais atrasado do que pretende.
Surge agora o primeiro cruzamento, e o semáforo está verde, laranja, vermelho? Não, ainda não é agora que vai fazer a sua escolha, mas já está muito próximo. O sinal está laranja. E agora sim chegou a hora de escolher qual é a sua história. O que vai fazer? Se vai parar, a sua história é a versão A. Se decidiu avançar, então você é a personagem da versão B.
Para finalizar:
por vezes não importa as escolhas que façamos, se alguém não respeitar o sinal verde da nossa vida.
Ainda acredita que o destino é algo que se pode controlar?!.....
Finalmente descobri o som e o cheiro de que tinha saudades. Afinal tudo o que nos contaram antes de sermos um só, era verdade. Eu conhecia a história, diziam que primeiro éramos filhos do Rocha e do mar que, impiedoso lhe batia e a obrigava a parir-nos na orla das suas ondas.
Mas eu nunca tinha visto nem a rocha, nem o mar, nunca tinha conhecido a minha mãe sofredora e o meu pai tirano e impiedoso. E, naquele fatídico dia ali estava eu, perante o meu imperioso pai e a minha majestosa mãe que lutava por se manter altiva na paisagem quebrando as ondas de fúria do meu pai.
Contavam também que depois o nosso pai a obrigava a abandonar-nos à nossa sorte. Alguns eram acolhidos por ele o mar, sendo arrastados para o fundo da vastidão do seu desconhecido mundo. Outros, ali permaneciam para sempre na orla do mar pai tirano, à vista da mãe rocha imponente, mas impotente, contra a tirania do mar.
Éramos minúsculos, insignificantes, pequenos grãos de areia espezinhado por pés humanos e patas de animais. Era humilhante. Afinal éramos filhos de dois gigantes. Mas filhos de dois gigantes que quer por vontade, ou por força das circunstâncias nos abandonaram à nossa sorte….
E mesmo sabendo disso, o cheiro de maresia, que, consigo mar trazia e o som das suas ondas que, ora batiam impiediedosas na rocha, ora a afagavam com meiguice e murmúrios impercetíveis, eram o som e o cheiro que me acompanharam toda a minha existência, desde que eu era um minúsculo grão de areia.
Um dia, uma garra de um estranho animal de ferro recolheu-nos e lançou-nos para um calor atroz, parecia que, do mar tínhamos sido lançados para o sol e deixámos de ser grãos de areia. Éramos uma massa incandescente. Pensei que nos tivessem lançado para o meio de um vulcão, daqueles que as gaivotas nos contavam existir e nos tínhamos transformado naquela massa incandescente e perigosa que deles saíam. Foi quando umas mãos humanas com um tubo e movimento rápido nos sopraram e arrefeceram e renascemos como como um só. Renascemos numa única criatura: num copo de vinho.
Inicialmente pensei que agora era mais forte, até que vi o que acontecia nas mãos de humanos descuidados: éramos quebrados e dispensados como se de nada importante se tratasse. Alguns tinham sorte eram postos numa caixa em que os faziam renascer num novo objeto. Mesmo assim não deixava de ser um sofrimento.
Mas, eu durante muito tempo tive sorte. Puseram-me numa caixa almofadada, diziam que existiam poucos com a minha forma e por isso era especial. Gostara quando a humana que abrira caixa sorrira. As mãos dela eram suaves. E quando os seus lábios tocavam as minhas extremidades, as minhas bordas, era como se me beijasse. E eu que tinha sido, rejeitado, espezinhado, derretido, transformado e nunca acarinhado, resplandecia de prazer e tinha um brilho único. Era como se o vinho cor de sangue com que ela banhava o meu corpo me desse vida e me embriagasse não só com o vinho, mas com a vida, com a sua presença.
O que mais me custava, era quando não era ela a pegar-me e permitia que outros lábios me tocassem, com mãos grosseiras, ásperas, pouco cuidadosas, com lábios ásperos , gordurosos, com bigodes farfalhudos que me agoniavam. E temia pela fragilidade do meu corpo naquelas mãos e noutras quando não era ela, quem me lavava.
Um dia nunca soube porquê, decidiu que o vinho só lhe sabia bem, se fosse eu, o seu copo. Não sei, talvez, o meu amor, a minha felicidade, se dissolvessem no vinho e a fizessem mais feliz.
Nesse dia toda a minha existência fez sentido.
Mas os anos passaram e sem que eu soubesse porquê, um dia, pegou em mim e chorando lágrimas sem fim, sorveu o último vinho rubro de sangue do meu corpo e tombou no chão inerte, sem vida. Ainda senti o calor da sua mão que me afagara tanta vez, mas esta entreabriu-se e rolei pela rocha, que reconheci ironicamente como a que me dera vida, e nela me quebrei em mil estilhaços.
Não fui levado para a caixa onde me fariam renascer noutro objeto. Hoje voltei a ser um grão de areia sovado pelo mar, socado pelo vento e espezinhado por pés de humanos e patas de animais. Mas as memórias de copo de vidro permanecem e ainda me enternecem.
Por vezes, quando o meu pai está no seus dias de meiguice, penso ouvir a sua voz, sentir as suas mãos e os seus lábios que me beijavam sorvendo o rubro liquido com que me inundava.
O vento contou-me que as suas cinzas foram espalhadas na vastidão do mar…
No início era o sonho a ilusão de uma vida a dois. Planos e projectos partilhados e levados em frente por duas mentes e quatro braços. No início eram os abraços, os beijos e a paixão. Eram as promessas vãs de uma cumplicidade inexistente que apenas existia na sua mente.
Aos poucos ela vislumbrou a verdade dolorosa e violenta que foi emergindo, mas não queria aceitar, o que sempre soube, o que sempre esteve dentro da sua mente, é que o seu casamento poderia transformar-se a qualquer momento numa faca de dois gumes, fabricada na forja dos ciúmes.
Lentamente o sonho deu lugar à desconfiança, a desconfiança à destemperança, a destemperança à violência; a violência à dor, e por incrível que pareça, a dor ao amor. Um amor fracassado que não sabe ser feliz, que só sabe marcar a punho, a murros, a insultos a sua presença. Um amor com sabor a traição, com odor a álcool, que exalava do hálito do seu companheiro , quando irrompia pela casa embrutecido e selvagem e a obrigava abrir as pernas e se servia dela, como objecto de prazer, como se uma qualquer se tratasse, sem qualquer significado para ele, e lhe violava mais do que o corpo a sua alma revoltada. Um não amor manchado pelo sangue da violência, da prepotência!
Sim, ela por fim percebeu que a sua vida não era senão uma faca de dois gumes que aos poucos a cortava e despedaçava. Percebeu que não há caminho que tome que a possa libertar. Se ficar do seu lado, será aos poucos mutilada, mesmo que o não seja fisicamente.
As humilhações e os insultos mutilam a sua auto – estima. Enquanto os seus punhos cerrados, lhe deixam nódoas negras no seu corpo e no seu coração pisado de sangue e maus-tratos. Se o deixa e foge, ele persegue – a e não a deixa viver. Ela sabe que vive num beco sem saída. E como não tem saída possível, volta para trás, sabendo que só sairá ferida, pela faca de dois gumes em que se transformou a sua vida. Talvez seja essa a saída, uma faca de dois gumes que possa cravar no coração, ou quem sabe se a loucura e a coragem o permitirem possa ela também cravá-lo no dele, num último abraço fatal.
Em homenagem às vítimas de violência doméstica
texto de ficção de minha autoria inspirado em testemunhos reaispublicado originalmente a · 28.01.08 Imagem retirada da internet do site da Apav Associação de apoio á Vítima. Peça ajuda Denuncie!
Já há algum tempo que se encontravam pela Internet. Ela tinha visto um programa onde as pessoas encontravam a felicidade em sites de Internet. Porque não? Pensou ela e registou-se num site considerado dos melhores, onde só pessoas influentes se registavam. Estava descontente com a vida, com a carreira, com a família e até com os amigos. Estava cansada de se sentir sozinha. De abrir a porta da casa e ser recebida pelo silêncio. Queria mais da vida. Não queria uma vida comum. Queria viver uma aventura um romance, como os dos livros que lia. Tinha visto num programa de televisão que naquele site poderia encontrar pessoas cultas de boa posição social e financeira. Porque não juntar o útil ao agradável? Pensou ela. E um dia em que nada tinha para combater a solidão, tomou então a decisão de se registar no site.
Porque não? Não tinha nada a perder. Era perigoso. Diziam-lhe algumas amigas. E conhecer alguém num bar, numa discoteca, ou até num trabalho não era?
Não lhe importava, gostava do risco. Do sabor a aventura que fazia sentir-se viva.
Entrou no site primeiro sem se registar. Foi procurando até que o encontrou. Era bom demais para ser verdade que aquela pessoa existisse. Parecia o homem dos seus sonhos. Escrevia a frase que ela costumava usar na brincadeira, na sua apresentação. “O mundo é lindo, vem conhecê-lo, comigo se a tua ideia de acampar é só em hotéis de 5 estrelas.” Não conseguiu evitar uma gargalhada e imaginar-se a acampar num hotel de 5 estrelas com um cavalheiro fino elegante e sedutor como ele parecia ser.
Registou-se e ganhou coragem. Viu que ele estava on-line e ganhou coragem. ” Olá como estás?”. Ele respondeu e foram falando. Perguntou porque o escolheu e ela respondeu que iria adorar acampar num hotel de 5 estrelas. Riram-se os dois. A partir desse dia falavam sempre à mesma hora. Contavam tudo um ao outro, tinham-se tornado amigos íntimos, cúmplices. A amizade virtual ganhava contornos de algo mais que uma amizade real. Decidiram dar o passo de se conhecerem pessoalmente. Já haviam trocado fotografias, confidências, intimidades, só lhes faltava trocar olhares, pernas, braços beijos, entrelaçarem-se de desejo que já sentiam. Era Carnaval. Combinaram ir a uma festa mascarados. Ela iria de “ Diaba”. Ele de Vampiro. Combinaram uma senha para terem a certeza. “Ela perguntaria, posso beber do seu corpo?” Ela responderia: “cuidado! Tenho o diabo no corpo.”
A festa era, como não podia deixar de ser num hotel de 5 estrelas. Ela chegou primeiro, conforme o combinado sentou-se no balcão do bar e pediu um Bloody Mary.
Não tinha passado muito tempo quando sentiu uma respiração quente no seu pescoço:”Posso beber do seu corpo?”, sorriu e respondeu “ cuidado! Tenho o diabo no corpo”. Virou-se para ele e a imagem era ainda melhor que na fotografia. Talvez fosse do fato vampiro, mas fez com que o desejasse ainda com mais ardor. Ele ficou impressionado. Ela tinha mesmo o diabo no corpo. E apetecia-lhe sugar-lhe alma, os peitos a boca. Percorrer todo aquele corpo com sua boca.
-Vem – disse-lhe ele.
Aquela voz rouca e quente fazia-a estremecer. Levantou-se e ele puxou-a para dançarem.
- Queres continuar aqui? – Perguntou-lhe ele
- Não – disse ela – vamos para um lugar mas calmo.
- Então vem.
Ela seguiu-o sem um palavra. Não conseguia descrever a sensação segui-lo-ia até ao Inferno. Ele queria levá-la ao céu.
Não fez perguntas. Ele levou-a para um dos quartos do hotel como se tudo estivesse previsto e planeado. Ela não se importou. Significava que a desejava.
-Lembras-te de como nos conhecemos?- Nem esperou pela resposta. Então vamos fazer o que combinámos.
Os morangos e o chantily encontravam-se já no interior do quarto. Ele não quis aguardar mais. Beijou-a. Despiu-a lentamente. Queria ter o prazer de descobrir como era olhar e desnudar cada pedaço daquele corpo. Ela percorreu o corpo dele freneticamente com as mãos. Queria senti-lo. Ele empurrou-a para cima da cama. Dispôs-lhe os morangos e o chantily em cima do corpo e foi-a beijando enquanto comia os morangos, lambia o chantily e lhe trincava ligeiramente os mamilos cobertos de cahntily. Ela queria que ele lhe sugasse a alma e ele que ela tivesse o diabo no corpo. Ela trincava os morangos e escorria-lhe o suco enquanto o depois o lambia e chupava pelo corpo todo até o fazer gemer de prazer. Eles uniram os corpos até que o prazer os derrotasse.
Desde esse dia nunca mais trocaram confidências, nem palavras, nem fotografias, nem desejos.
Apenas entrelaçaram os corpos, as almas e nenhum dos dois queria mais do que isso.
Ela via nele o homem que lhe queria devorar mais do que o corpo a alma. Para ela, ele era a tentação a que nunca conseguia resistir, o jogo sem vencedor. Não queria continuar, mas não conseguia sair nem resistir àquele jogo de sedução.
Ele via nela o sangue, o pecado, o demónio da tentação que infernizava os dias na busca do prazer que ele não queria perder.
Um dia depois de fazerem amor beberam duas taças de vinho tinto,que ela escolhera, rubro da cor do sangue . Ele fora fumar para varanda.
Quando regressou ela dormia e tinha um bilhete na almofada dele.
"- Desculpa o jogo acabou. Ganhaste a minha alma."
Ele sorriu e adormeceu. “E tu ganhaste a minha” pensou ele.
Adormeceram ambos embriagados pelo veneno da sedução, sorvido num cálice de vinho tinto, rubro da cor do sangue.
Olhei para ele, ao longe. Fiquei na dúvida se era alguém com quem há muitos anos atrás, partilhara sonhos, projetos, alegrias e tristezas. Aproximei-me um pouco, discretamente, não queria que me visse, sem eu ter a certeza.
Muitos anos se tinham passado, mas aquelas mãos, aquele olhar, tinham ficado gravados para sempre algures num, recanto escondido da minha memória.
Não me quis aproximar mais. Agora, a incerteza era se eu queria ou não reabrir a caixa, onde guardava todas as memórias que me faziam sofrer. Afinal eu fechava-as a cadeado naquela caixa secreta da minha memória, para enganar o sofrimento.
O Tempo não tinha sido bondoso para ele, as rugas sulcavam-lhe o rosto, o cabelo estava quase completamente branco e apesar de se terem passado muitos anos, ao olhar para aquele rosto impiedosamente envelhecido pelo tempo, o cadeado começava a enfraquecer e a quebrar-se. Enferrujado pelas lágrimas das memórias fechadas, o cadeado abriu-se e as memórias soltaram-se da caixa como se fossem todos os males contidos na caixa de Pandora.
O sofrimento e a raiva da traição percorreram-me a mente e o corpo em segundos, num frenesim elétrico agitado, como se tivesse apanhado um choque elétrico.
As melodias dos noturnos de Chopin invadiam-me a memória, ao mesmo tempo que as imagens de umas mãos dedicadas e uns dedos esguios, deslizavam pelas teclas do piano, com uma agilidade quase felina e uma melodia harmoniosamente mágica se espalhava pela casa.
Despois, inebriados pela magia do som, as mesmas mãos delicadas, os mesmos dedos esguios, trocavam as teclas do piano, pelas curvas do meu corpo, as minhas tentavam desajeitadamente acompanhar-lhe o ritmo e o compasso e ambos inebriados de música, de magia e de paixão atingíamos o êxtase dos sentidos.
Um dia partiu numa digressão e eu não pude acompanhar. Regressou apenas para levar as suas roupas e o piano. Tinha-se apaixonado pelas mãos da colega com quem tocava duetos, da mesma forma que eu me apaixonara pelas suas.
Inebriada pela dor das memórias a cobardia assolou-me e não fui capaz de me aproximar.
Fingi ajeitar os quadros da galeria. Sózinha, abandonada, ferida, afogara as mágoas nas telas e no pincel. A dor e o sofrimento transbordavam de tal forma nos meus quadros que o sucesso fora inesperado.
A Galeria tinha esvaziado. Estávamos somente os dois.
“Sabes, nunca te consegui esquecer.” – Soou ao meu ouvido a voz sonante e profunda tal e qual como eu a recordava destoando do Homem acabado que estava à minha frente.
Segurava uma brochura da exposição nas mãos. E agora que se encontrava na frente dos meus olhos, percebi que tremiam desmesuradamente.
A voz embargava-se-me na garganta, mas consegui articular apenas:
“Não” - E ele percebeu que o reconhecera e que nunca o perdoara.
“Desculpa, eu fui um idiota. Só quando passei pelo mesmo é que percebi o sofrimento que te infligi”.
“Andei para a frente e hoje sou outra pessoa. Já foi há tanto tempo que esqueci há muito.” – Menti.
Era verdade que andara para a frente e que era outra, mas o sofrimento, liberto da caixa das memórias ainda me sufocava, como no dia em que ele regressara apenas para partir.
Convidei-o para um café. Falámos como dois velhos amigos que se reencontraram. Contou-me a vida que tivera. Uns anos de sucesso pelo estrangeiro a par e a solo. O auge da Carreira. Depois a doença Parkinson. O abandono da companheira. E o fim precoce da carreira.
“Foste a melhor coisa que me aconteceu na vida.”
“Infelizmente não posso dizer o mesmo.”- Respondi não me importando com os sentimentos dele.
Senti-me mal com os meus próprios sentimentos. Senti-me vingada. Ao contrário da caixa de pandora que no fundo tinha a esperança, no fundo da minha caixa ficara apenas um imenso vazio onde o perdão não conseguia entrar.
Mesmo assim, um triste sentimento de pena invadiu-me e ofereci-lhe o quadro das mãos dele nas teclas do piano.
Disse adeus para sempre e parti com aquele que era realmente a minha alma gémea.
Não escrevo data nem ano pois este assunto é demasiado delicado, assim será intemporal. É demais para mim calar este segredo que atravessou gerações. Sinto angústia, um nó na garganta, Porquê eu? Logo eu porque haveria eu de ser escolhida para guardar um segredo desta dimensão. Um segredo que me dá o poder de destruir famílias, quem sabe de causar mortes e desgostos, mas que por outro lado poderia trazer a felicidade desejada para alguns.
Só em ti, posso confiar e nem a ti o posso contar. Sinto-me como aqueles Druidas que eram autênticos livros cujos segredos passavam oralmente de geração em geração. Só que o meu segredo tem de permanecer calado, fechado, angustiado e sem salvar quem posso salvar. Só há uma maneira de aliviar a minha consciência deste segredo. Deixar que o descubram, sem que seja eu a o dizer. Sim dessa forma nunca trairei o segredo dizendo-o, mas se o descobrirem destruirá famílias. Que posso eu fazer?
Não sei. Alivia-me desabafar aqui os meus pensamentos, mas aliviar–me - a ainda mais se pudesse confiar em alguém, para contar aquilo cujas dimensões são tão grandes, que me pesam demais na alma.
Poderei em ti confiar? Não sei, não sei. Ninguém sabe da tua existência. Somente eu. Quem me passou tal fardo para a consciência já não pertence ao mundo dos que respiram entre nós, pelo que me resta a mim ser a guardiã desta poderosa revelação cujas consequências temo se um dia a revelar. Mas por outro lado quantas vidas não permanecerão infelizes se o não fizer?
Não há como o saber a não ser que um dia seja revelado por acidente. Mas não consigo partir de alma tranquila levando-o comigo para sempre. Por isso vou arriscar aliviar o meu sentimento de culpa nas linhas que seguem…”
Foi apenas esta a página do Diário que os seus parentes conseguiram ler depois de a encontrarem no seu sono eterno na sua poltrona, o seu leito de morte.
Talvez haja segredos que nunca devam ser revelados. Quem sabe desta forma ela teve a resposta às suas dúvidas. Foi assim que todos pensaram e o segredo morreu com ela para sempre, mas ficou em todos a desconfiança de qual seria a enorme nuvem que continuava a pairar sobre a sua família.
Conto de ficção de minha autoria para a Fábrica de Histórias.
Entraste devagar, calado com o teu ar de sempre, silencioso e cansado. Encontraste-me sentada no sofá, com a televisão desligada. O rádio passava uma música suave, num tom baixinho, agradável, suave como a própria música. Eu estava a fumar e fitava no meio nada, as formas que o fumo que eu exalava, tomavam. Acercaste-te de mim e perguntaste-me: "- O que tens?" respondi-te sorrindo "- Preguiça!". "- E tu?" - perguntei eu, - "- Tenho sono!" - respondeste-me e sentaste-me ao meu lado. Ficámos assim lado a lado. Silenciosos, apenas fitando o fumo que brincavas às formas no ar. Como era bom estar assim, junto de ti, sabendo que o silêncio podia também ser uma forma de amar. Com ar, ainda mais ensonado, do que quando tinhas chegado, afagaste-me suavemente o rosto. E sem falarmos nada, beijámo-nos. Os nossos corpos envolveram-se numa carícia única, num amor sem fim, sem trocar uma única palavra, mas dizendo mais que nunca!
Depois ficámos ali parados, olhando um para outro e finalmente quebraste o silêncio:
"- Estás bem?" - acenei-te que sim com cabeça e puxei-te para o meu lado. Adormeceste vencido pelo sono, mas sorrias de felicidade. Eu fiquei ali acordada, escutando a tua respiração, a melodia suave que ecoava no ar, e tentando guardar para sempre o calor do teu corpo junto de mim. Depois tive sede, levantei-me fui à cozinha buscar água e quando voltei abri a porta da sala... acordei!
Olhei à minha volta, ainda estremunhada, tudo estava como no início. Eu estava sentada no sofá, a música suave ecoava no ar. Acendi um cigarro e comecei a fumar. E ali fiquei, fitando no meio do nada, as formas em que o fumo se estava a transformar, e chorei. Chorei sem fim, por o sonho, não ser mais que uma recordação. Uma recordação dos tempos em que nem o sono, nem a preguiça eram mais fortes do que o nosso amor. Nada era mais forte do que aquele amor que me guiou para ti, que fez com que eu fosse a tua companheira de jornada, durante tantos anos que lhes perdi a conta. Agora a minha felicidade está presa a recordações. A nossa música, o teu perfume, as nossas gargalhadas, cheiros, sabores e até pequenos sons banais do quotidiano, são estes pequenos retalhos da nossa existência que me deram força para continuar a jornada da vida. Sim, porque agora já só me restam as tardes de sono e de preguiça que me fazem recordar o tempo que estavas comigo e eu... eu era feliz só por te amar. Não sei como nem porquê todas estas recordações fizeram-me sentir o teu perfume no ar. Levantei-me e fui até ao quarto, uma túlipa branca, repousava como por magia, junto da almofada que costumavas usar. Sorri feliz. Tinha sido mais do que um sonho. Tinhas-me ido visitar.
Sempre o avisei que não perdoaria uma traição. Ele jurava-me que era fiel e eu respondia sempre que Fiel era nome de cão e que quanto mais mo afirmava mais eu sentiria a traição. Tudo parecia normal até ao dia em que ele se atrasou para me ir buscar para jantar com a desculpa de que estava a trabalhar. Tinha ficado a adiantar serviço acumulado no escritório. Decidi ir lá fazer-lhe uma surpresa, afinal ele tinha-me dado a chave para o caso de ser necessário. Não hesitei e dirigi-me ao escritório. A luz estava acesa e estava lá gente. Bem pelo menos era verdade que estava a trabalhar, pensava eu. Mas assim que rodei a chave dei de caras com o seu atraente sócio. Inicialmente pensei que estivessem os dois e ele tivesse saído para ir buscar alguma coisa. Mas assim que perguntei vi pelo ar espantado do seu sócio que ele me mentira. Como sabia que este me desejava pois já por vezes se insinuara. Fiz o número da mulher traída e sentei-me a chorar. Conforme o previsto ele não resistiu a me consolar. Assim que os seus braços me envolveram senti que existia aquela química entre nós. Não resisti a ceder aos seus beijos carícias, enquanto ele dizia que o sacana do meu marido não me merecia. Estar em cima da secretária dele ainda me deu mais gozo.Pela primeira vez percebi a excitação e adrenalina da traição, enquanto aquelas mãos fantásticas percorriam o meu corpo e me iam despindo e me deitavam em cima da secretária onde consumámos o nosso desejo. Desde esse dia que combinamos encontros secretos. Ele pede-me que largue o sacana do meu marido para ficar comigo, mas eu confesso fiquei viciada na adrenalina da traição e como lhe sou fiel, mantenho as coisas assim. Se ficasse com ele iria inevitavelmente traí-lo. Prefiro ser-lhe fiel e continuar a trair o meu marido.
Tudo começou num Domingo como outro qualquer. Eu nunca gostara de Domingos, era um daqueles dias rotineiros em que nunca nada de novo acontecia Estava tão entediada que depois do almoço em casa dos meus pais vim para casa. Passei a tarde em frente à TV brincando de zapping com o comando na mão. Divertia–me imaginando como seria uma história com todos aqueles retalhos de imagens juntos. Já cansada e antevendo mais uma inútil e cansativa semana a embalar frutas, decidi deitar-me cedo.
Já estava dormir há algum tempo quando ouvi um grito de homem que pedia ajuda. Olhei para o relógio já eram onze da noite. Pensei que tivesse sido um sonho e como não voltei a ouvir nada fechei os olhos de novo. De repente alguém me batia à janela da varanda que dava acesso ao meu quarto freneticamente. Meia ensonada sem pensar no que estava a fazer, abri a janela e sem ter tempo de dizer nada, entrou um homem que me tapou a boca enquanto dizia:
- Não grites, não te vou fazer mal. Só preciso de ajuda.
Eu bem tentava gritar, mas como não conseguia desisti e ele largou-me pedindo:
-Ajuda-me. Preciso de me esconder. Não te assustes, não te faço mal, nem sou deste planeta.
Ganhei coragem e enfrentei-o com corrente de questões:
- Quem és tu? Porque foges? Saíste de algum manicómio para dizeres que não és deste planeta? Como chegaste à Janela dum sétimo andar?
Enquanto fazia estas perguntas pude observar como era invulgarmente belo. Alto, moreno, cabelos e olhos negros, mas esrtanhei o seu tom de pele muito dourado.
- Sou Zalán, o princípe herdeiro de Zirycon um planeta numa via láctea vizinha da vossa qua ainda não conheceis. O meu tio quer roubar-me o reino e os meus conselheiros aconselharam-me a me refugiar neste planeta.Mas ele descobriu e andam atrás de mim para me matarem.
-Então ambos corremos perigo? Perguntei, pensando que se entrasse na maluquice e fingisse que acreditasse era mais seguro.
-Sim, mas a Guarda real deve estar a chegar. Pois já enviei um pedido de auxílio.
Nisto ouvi um estrondo, e vejo uma série de seres estranhos entrarem–me em casa com armas estranhas, enquanto nós assistíamos escondidos no roupeiro.
Olhei para o meu hóspede e percebi que o “Z” estilizado na sua roupa e na sua pulseira eram iguais às fardas dos que venciam a luta.Felizmente tudo ficou em bom estado. Quando todos saíram Zalán pegou-me ao colo e disse-me:
-Vem comigo! Tornar-te-ei rainha de Zyrcon.
-Mas eu mal te conheço.
-Vem conhecer o meu planeta
-Porque não?- Pensei eu, tendo a certeza de que era um sonho.
Acho que nunca acordei.
Já se passaram seis anos na Terra. Hoje sou a feliz rainha de Zirycon e tenho quatro filhos lindíssimos.
Fui dada como desaparecida no Planeta Terra e só lamento não poder dizer à minha família como sou feliz pois não acreditariam. Espero que eles leiam esta mensagem.
Desde o primeiro dia que se encontraram que ela o amou, um amor diferente como nunca tivera por ninguém. Ele representava para ela inocência que em tempos tinha perdido. Trazia-lhe de volta os sentimentos bons que a vida a fizera perder. Era jovem, belo e puro demais para ela. A sua candura lavava-lhe a alma, mas ela achava que se consumasse o seu amor a sua paixão por ele, perderia tudo num dia. Desde que a vira quando lhe abrira a porta, na firma onde era recepcionista que ele a fixara na memória. Achara-a bela, fria, inatingível. Era um desafio para ele que gostava de desafios. Eram raras as vezes que se cruzavam na firma onde ambos trabalhavam e se tinham conhecido. Mas numa dessas raras vezes combinaram tomar café. Descobriram que ambos vinham terras próximas para se terem cruzado num destino tão distante do seu destino de origem. Ela desejava-o para ele desde o primeiro momento mas ele ostentava o aviso de coração ocupado na sua mão. Por ironia ou acaso do destino, no fim desse dia ela decidiu dar outro rumo ao seu coração. Passaram-se meses sem se verem. Ela saíra da firma e não se dera ao trabalho de se despedir. Voltaram a cruzar-se em plena rua de Cedofeita, ele descortinara-a por acaso entre transeuntes, artistas de rua, vendedoras de meias e de frutas. Ela reconheceu-o imediatamente. Trocaram palavras e números de telefone. Mas ficaram-se pelas palavras. Ela sentira um brilho diferente nos seus olhos quando ele a descobrira. Os anos passaram e ambos, sem saberem um do outro, à sua terra de origem regressaram. Numa noite de festa, um antigo amigo dela reconhece-a e chama-a, mas é ele o seu amor fugitivo em que os dela recaem. Finalmente saem juntos. Trocam beijos e carícias. Mas o coração dela desta vez estava dividido. O fascínio por a mente preversa e calculista de outro prendia-a. Tentava inutilmente lutar contra isso. Senia as grilhetas duma paixão sórdida e destruidora a lutarem contras as asas de uma paixão pura que promete ser feliz. Há contudo nela um lado frio, oculto que a submete a tão destruidor fascínio. O desejo de vingança. Confessa-lhe que se sente dividida. Ele pensa que ela não o ama. Porém um amor puro como o que sente por ele, ela nunca o teve por ninguém. Um amor tão puro que a faz protegê-lo renunciando ao que mais deseja: consumar a sua paixão por ele. Assim ela não regressa aos braços do outro e desiste da vingança. Decide lutar não pela vingança, mas sim pelo amor. O tempo fora implacável. Era tarde demais. Ele seguira com a sua vida como ela o aconselhara a fazer. Reencontram-se. Abraçam-se e despedem-se, pedido um ao outro: - Não desapareças! Mas nunca mais se cruzaram. Ela guarda-o num cantinho especial do coração como aquele que lhe devolveu alma e consola-se de o ter perdido pensando que dessa forma jamais o viria a odiar como odeia aquele que um dia a fascinou. Conto de ficção escrito por mim para Fábrica de Histórias ilustração retirada da internet
-Beija-me…- Disse ela de pé, para ele sentado a seu lado em cima do muro. Ele espantado, concentrou-se no silêncio que antecedera estas palavras. Devia ter imaginado algo. Desejava-o com tanta força que imaginava ouvir a voz ligeiramente rouca e doce dela pedir-lhe: beija-me.
-Ouviste o que te pedi?
-Desculpa, pensei que estivesse a imaginar.
-Porquê não me queres beijar? Perguntou ela num misto de tristeza e divertimento, mas honestamente intrigada..
-Sim. Quero. É o que mais quero. Não me estás a gozar?
-Porque haveria de o fazer?
-Não sei...
-Pára com isso e beija-me!
-Mas..
-Mas o quê?
-Mas eu só tenho doze anos e tu já tens catorze .
Ela riu-se.
-Tens com cada uma. Quero lá saber disso. Conheço-te desde que nasci. Hoje é o dia perfeito para me beijares.
Foi assim que sentado num muro por ser mais baixo do que, ela à luz da estrelas e do luar que ele deu o seu primeiro beijo.
-Gostaste?- Perguntou-lhe ela.
Ele ainda estava a viajar por entre a lua e as estrelas sem acreditar.
-Devo estar a sonhar.
-Não, não estás.- E voltou a beijá-lo.
-A que te soube?
- A azul do céu, se as cores tiverem sabores este é o teu, sabes a azul do céu! E eu?
-A amoras frescas acabadas de colher.
-Agora vamos para a nossas casas que já é tarde.
-Amanhã, encontramo-nos?
-Sim- Disse ela com um brilho igual aos das estrelas nos olhos.
Mas não voltaram a encontrar-se senão passados dez anos. O tempo não passara por ela e a sua voz era inesquecível.
-Dá-me licença?
Ele virou-se.
-És tu? És mesmo tu?
-Eu quem? Respondeu ela divertida sem o reconhecer.
- Não te lembras de mim? Crescemos juntos, brincávamos no muro junto ao telheiro de noite, fingíamos que éramos gatos e tudo o que se possa imaginar, um dia desapareceste e nunca mais soube ti. Tinham mudado de casa.
-Sebastião? Não acredito! -Lançou-se-lhe nos braços como se fossem crianças de novo. -Desculpa esta é tua namorada? – Perguntou um pouco atrapalhada notando uma presença feminina ao lado.- Ele riu.
-Não, não tenho ninguém É apenas a menina da loja.
-E tu?
-Nem namorado, nem marido. Mas chega aqui. Há uma pessoa que te quero apresentar.
Junto das prateleiras de livros infantis estava um menino cujo perfil era indubitavelmente o dela.
-Este é Sebastião. O meu filho. Foi por isso que parti sem nada dizer.
-O teu filho?
-Vamos tomar um café?
Dirigiram-se para a cafetaria da livraria .
-Sim. Foi por isso que te pedi um beijo naquela noite. Queria imaginar que ele era um pouqinho teu.
-E o pai?
- Nunca mais soube dele. Depois dele fazer o reconhecimento da criança nunca mais o vi. É o Mateus que era da minha turma. Os pais mandaram-no para Londres para casa de uma tia-avó. No entanto os pais dele mandam dinheiro todos os meses para o neto. Mas não o querem ver. Também sofri tanto que não preciso de mais nada e nem quero ver a cara de ninguém daquela família.
-Porque não me disseste nada.Eu tinha-te ajudado.
-Porque não queria destruir a imagem romântica que eu sabia que tinhas de mim. Além disso eras uma criança inocente. Dois apenas de diferença, eu sei, mas naquela altura era uma diferença enorme. Mas queria que tivesse sido teu, por isso quis sentir o teu sabor.
-Olá Sebastião...
-Olá, és o amigo da minha mãe que diz que as cores têm sabor?
Sebastião sorriu.
-Ela contou-te isso?
-Sim, perguntei à minha mãe a que sabiam os beijos. Ela respondeu que um dia um amigo lhe disse que sabiam a azul do céu…
.-Sim fui eu. Porque quiseste saber?
-Queria saber porque me chamava Sebastião e ela disse que foi por ser o nome da única pessoa que gostou dela de verdade e lhe deu o beijo mais saboroso do mundo.
Ele olhou para ela e ela enrubesceu como se tivesse catorze anos de novo. Ele nunca a esquecera, mas o amor magoara-o demais. Fora o seu primeiro beijo e a sua primeira desilusão.
-Sempre pensei que fugiras de mim por causa daquele beijo.
-Oh não, nunca..os meus pais não me deixaram falar com mais ninguém, desculpa eu não te quis magoar...
-Agora percebi.Foi bom ver-te. Tenho de ir para a missa.
-Vais à missa?
-Não. Vou celebrá-la. Sou o novo pároco desta paróquia.
Ele vislumbrou uma nuvem de decepção nos olhos dela e como que em jeito de se desculpar disse-lhe:
-Eu nunca te esqueci, pensei que te perdera para sempre. Querem vir assistir?
-Com certeza.- Disse ela.
-Não te volto a perder. Posso ter-te perdido como homem, mas hoje vejo que nunca te perdi como irmão de amizade e isso vale mais que mil paixões.- E seguiram de mão dada até à igreja.
A multidão cochichou entre si. E muitos rumores soaram nos anos que se seguiram. Mas nunca as vozes do povo tiveram razão em falar.
Passados 30 anos. Encontravam-se ambos debaixo do telheiro. Ela de pé. Ele sentado no muro.
-Beijas-me? – Disse ela.
Ele não respondeu, deu-lhe ao de leve um beijo na testa.
-Não, beija-me mesmo, só por esta vez.
-Sou um padre. Sabes que não posso.
-Só por esta vez.
Ele não resistiu e beijou-a. Ela nunca perdera o sabor a azul do céu.
-Porque me pediste para te beijar?
-Porque queria levar o teu sabor a amoras frescas acabadas de colher comigo. Prometes-me tomar conta do Sebastião?
-Sim, embora ele já seja um homem feito, mas porque me pedes isso?
-Porque tenho de partir. - E dizendo isto desfaleceu nos seus braços adormecendo para sempre.
Nunca um serviço fúnebre lhe fora tão doloroso, mais a mais, por sentir que aquelas almas presentes o condenavam.
Como se pode condenar um amor tão puro? Nunca ninguém acreditaria que em 52 anos de existência a amara sempre e só tinham trocado dois beijos, mas a coincidência do filho ter o seu nome também não ajudava.
Só quem amou verdadeiramente acreditaria num amor tão puro. Não se importava com o mundo.
Olhava o céu, queria encontrá-la. Ainda tinha o seu sabor a azul do ceú, na boca.
Disseste-me que eu conseguiria chegar ao fim da caminhada. Disseste-me que estarias sempre do meu lado para me amparar, quando tropeçasse nas pedras da calçada. Prometeste que o céu um dia seria meu. Garantiste que eu seria capaz. Ensinaste-me todos os truques para evitar inimigos, e todos os golpes para os confrontar com sucesso os adversários mais ardilosos. Fizeste a jura eterna de que jamais me abandonarias, durante toda a jornada. Mesmo que falhasse, mesmo que eu dissesse que não era capaz. Tu estavas ali. Estavas ao meu lado. A tua voz ecoava no meu íntimo e dizia-me baixinho: - Força! Eu sei que tu és capaz! E enquanto permaneceste do meu lado, eu fui capaz! Ultrapassei todas as barreiras com que deparei. Utilizei todos os teus ensinamentos. Cumpri as regras do jogo. Mas estava dependente de ti, como as lapas do mar dependem das rochas a que se agarram. Porque eu sabia que podia falhar, que tu estarias ali para me amparar.
Eu estava confiante que escalaríamos a montanha da vida juntos. Eu estava confiante. Segura que tinha onde me agarrar. Tu eras a minha rocha, a minha pedra angular. Mas desvaneceste-te. Desapareceste do meu caminho. Desfizeste-te como uma rocha sedimentar. E eu já não sou capaz de continuar, porque caí. Porque acreditei em ti. Mas tu eras uma pedra falsa na qual me apoiei imprevidente. Confiante demais para evitar a derrocada. Estou ferida, humilhada da queda. Caminho cambaleando, em busca do equilíbrio perdido. Sofro. Grito que não sou capaz! Sinto a vida a fugir-me como areia a escorrer por entre os dedos de quem brinca com ela. Descubro que erigi a minha vida como um castelo à beira do mar. Agora sei que era tudo mentira. Tudo aquilo em que me fizeste acreditar não passava de uma grande ilusão. Fizeste-me viver agarrada a ideais, que não existem. Rochas que se transformaram em areia.
Resta apenas o vazio. O sofrimento. A sensação de abandono, de traição. Um porquê desesperado em busca da razão. Mas eu vou sobreviver. Vou sobreviver porque já não me agarro à segurança do teu amor, da tua protecção. Eu vou sobreviver porque agora é o ódio sequioso de vingança que me guia.
Perseguir-te-ei sombria e sorrateiramente até ao fim dos meus dias. Derrotar-te-ei lenta e incessantemente, da mesma forma que o mar derrota as rochas, transformando-as em areia. E afinal o que és tu? Senão uma ilusão! Uma pedra falsa, areia: uma rocha sedimentar vencida pelo mar!
A chuva caía impiedosa sobre as ruas sombrias da cidade fria. A noite chegara escura e tempestuosa à cidade, indiferente à azáfama, daqueles que regressando do trabalho, corriam apressadamente para o reconfortante abrigo que eram os seus lares. Nas ruas, apenas se ouvia o som ritmado da chuva e o ulular do vento, formando uma estranha melodia, de certo modo reconfortante para aqueles, que se encontravam abrigados no seu lar., sentados à mesa com o jantar a fumegar. Pouco a pouco, foram-se acendendo as luzes na cidade, luzindo ao longe como estrelas caídas no chão!
Marianita, junto da lareira não conseguia esquecer o quadro triste que assistira ao regressar da escola. Ainda não tinha anoitecido, quando iniciara o seu regresso a casa. Mas a chuva parecera enegrecer o entardecer. Marianita seguia sozinha nas ruas semi- desertas, onde apenas circulavam alguns transeuntes mais incautos apanhados de surpresa, que procuravam abrigar-se . Marianita caminhava observando, como a cidade se tornara deserta e hostil naquelas horas. Gostava de apreciar tudo o que a rodeava enquanto seguia o seu caminho. Como a sua casa ainda era distante da escola, distraía-se apreciando tudo o que via no caminho. As “vendedeiras” de rua (como o povo lhes chamava) gritando:
- Oh, Menina! Compre que é a cem! Meias de senhora para fazer a perna bonita!
- Quentinhas e boas! Castanhas assadas...Olháá castanha assada! –
Por vezes não resistia ao fumegar das castanhas, que lhe assaltavam o nariz, despertando-lhe a gulodice, e acabava por comprar o tradicional cartuchinho de castanhas feito de jornal. Entretinha-se então a comer as castanhas pelo caminho e quando terminava, por brincadeira ia ver que notícias vinham de “brinde” no cartucho das castanhas. No outro lado da rua, via uma mãe passeando carinhosamente o seu bebé, que mostrava com orgulho às amigas que encontrara por acaso. Via os lojistas darem os últimos retoques para o fecho das suas lojas. Pelas ruas da cidade ouvia-se falar de tudo um pouco: da vida que estava cada vez mais cara, das guerras intermináveis que todos os dias apareciam nos noticiários da televisão e nas páginas dos jornais; dos políticos que nada faziam e tudo prometiam; da doença estranha da vizinha; e uma infinidade de coisas triviais, mas que pareciam dar uma vida própria à cidade, como se estas fosse um quadro vivo. Pelo caminho via ainda algumas pessoas que passeavam o seu cãozinho ou cães que passeavam os donos, como lhe dissera uma vez um amigo, após assistirem a um aparatoso trambolhão de um dono que não conseguira segurar o seu cão! E Marianita ia pensando naquelas pessoas como personagens de um romance, que ela achava real. Pois não eram os romances, retratos fantasiados da vida?
Mas naquele dia, não era nenhuma dessas imagens que lhe permanecia na mente. Era uma imagem bem diferente e bem triste. A vida na cidade, não torna de pedra só as paredes das casas, mas também o coração daqueles que a habitam. Habituados a conviver com as misérias da vida, as pessoas acabam por se habituar a lhes passar ao lado. Mas quando a miséria bate à porta daqueles que de alguma forma nos tocam o coração, algo muda e faz-nos recordar que afinal, somos humanos e não animais em luta pela sobrevivência numa selva de pedra.
Marianita reparara ao passar pelas escadas da Igreja, que a Ti ‘Joana ainda aí se encontrava. Abrigada no vão das escada, embrulhada em sacos plásticos de recolher o lixo. Todos conheciam aquela velhinha que vendia flores junto à igreja. Todos sabiam quem era a Ti ‘Joana, mas poucos sabiam da miséria em que vivia. Ela tinha grande simpatia pela Ti’ Joana como todos os que a conheciam. Por vezes observava-a e ficava a pensar que deveria ter sido muito bonita na sua juventude, aquela velhinha. Pequenina, já encurvada pelo peso dos anos, de cabelos alvos, tez tisnada pelo sol e olhos redondinhos, muito vivos, brilhantes como safiras. Mas o que ela achava ainda mais bonito na ti’ Joana, era o seu sorriso radioso, que parecia aquecer o coração daqueles que por ela passavam.
Todas as tardes passava por ali, e dava dois dedos de conversa com a ti ’Joana:
- Então ti’ Joana como vai?
- Cá estou minha flor, cá estou! E a menina como vai a sua escola? - Marianita respondia
- Ora, vai indo! Às vezes é difícil mas tem de ser! E a ti’ Joana sempre dizia:
- Estude minha flor, estude para ser alguém. Olhe que eu não pude e acabei aqui, a vender flores à porta da igreja, na minha velhice – e nisto levantava-se e oferecia-lhe uma flor que ela não queria aceitar,( por compaixão), mas ti’ Joana insistia :
- Se não aceitar, fico triste consigo. Mais a mais, a menina tem-me comprado tantas, que essa não me deixa pobre. E agora vou arrumando, que me vou recolher! - Marianita beijava a face da velhinha em jeito de agradecimento e despedia-se:
-Até amanhã ti’ Joana.
- Até amanhã se deus quiser, minha flor – respondia-lhe a ti’ Joana e sumia-se vagarosamente pelas ruas estreitas na traseira da Igreja.
Todos sabiam quem era a ti’ Joana que vendia flores na porta da Igreja todos a conheciam, mas muito poucos ou nenhuns sabiam da miséria em que vivia. Só naquela tarde chuvosa de inverno Marianita se apercebeu dessa situação.
- Ti’ Joana não vai para casa? Olhe que com esta chuva e sem agasalho fica doente!
- Oh, minha flor! Estou à espera que me venham avisar se há vaga no Albergue. Com esta chuva costuma estar cheio. Mas eu não pude ir lá mais cedo! – Marianita ficou espantada.
-Albergue?! Então a ti’ Joana não tem a sua casa? - Perguntou admirada.
-Oh, minha flor! A pensão não dá para pagar uma renda e o que ganho com as flores, dá-me para comer e já pouco me sobra para o resto! – Muda de comoção, a rapariga sentiu as lágrimas a rolarem-lhe pela face abaixo. Mas para que, ti’ Joana não se apercebesse, retirou o guarda – chuva rapidamente e afastou o rosto, que molhado pelas lágrimas de chuva, disfarçava as lágrimas de compaixão. De seguida, retirou o sobretudo e num gesto espontâneo saído do coração, agasalhou com ele a velhinha que reclamava com Marianita para não o fazer. Mas esta respondeu-lhe:
-Agora quem fica triste consigo, se não aceitar sou eu! Eu já estou perto de casa! - E nisto abriu o guarda – chuva e pousou-o na mão de ti’ Joana para esta se abrigar dizendo-lhe ainda:
-Espero que consiga lugar no albergue depressa e que pelo menos esteja mais aconchegada, enquanto espera.
-Eu bem digo que você é uma flor – e puxando-a junto a si, cobriu-lhe o rosto de beijos, enquanto lágrimas rolavam pelo seu mimoso rosto enrugado. A rapariga deu-lhe um beijo no rosto e desprendeu-se suavemente.
-Agora tenho que ir depressa, por causa da chuva! – Desculpou-se e desatou a correr sem parar, numa ânsia desenfreada de chegar a casa. As lágrimas corriam-lhe incontrolavelmente pelo rosto. Ia tão triste, tão chocada, que já nem sentia a chuva, nem distinguia as suas lágrimas das gotas da chuva. Sentia-se sem forças para lutar contra aquela miséria. Se a casa fosse dela, mais que não fosse aquela noite, a Ti’ Joana teria cama, comida e roupa lavada. Mas a casa não era sua, era de seus pais e estes austeros como o eram não o permitiriam. Quando chegasse a casa teria de dizer que se tinha esquecido do sobretudo em casa de uma amiga, onde fora lanchar que se esquecera dele na escola, alguma desculpa arranjaria. Mas não foi preciso. Ninguém a viu chegar, e quando a viram, junto à lareira, já tinha tomado banho e encontrava-se de roupão e chinelos. Mas naquele momento, não era o facto de ter dado o sobretudo que a preocupava. Não conseguia tirar da sua mente a imagem da ti’ Joana, tão velhinha, tiritando de frio, mal abrigada da chuva e do vento, na iminência de passar uma noite ao relento. Um rodopio de pensamentos assaltava-lhe a mente constantemente. Ti’ Joana não teria família? Filhos, sobrinhos? Alguém que a acarinhasse na sua velhice? E pensando nisto tudo, ficava cada vez mais triste. A ideia de tentar ajudar aquela velhinha não lhe saía da ideia da cabeça. Mas que poderia fazer ela com os seus dezoito anos e sem recursos próprios? De repente teve uma ideia! Iria falar com D. Irene, a sua vizinha. Sabia que ela era assistente social e tinha e especial simpatia por este tipo de situações. De certeza que iria fazer alguma coisa. Era isso! Amanhã, bem cedinho iria juntamente com D. Irene falar com a ti’ Joana e veriam como a poderiam ajudar. Mas a imagem de ti’ Joana dormindo ao relento naquela noite fria e chuvosa, não lhe saía da cabeça.
Perto de sua casa, junto à igreja continuava Ti’ Joana, que rodeada das flores que sobravam e aconchegada pelo sobretudo de Marianita, se deixara dormir, vencida pelo cansaço dos anos. E sonhava. Tinha sonhos lindos. Sonhava com uma cama quentinha, com lençóis de linho. Sonhava que Marianita vivia com ela e a beijava antes de adormecer. Depois o sonho mudava. Sonhava com flores. Sonhava que estava num prado imenso rodeada de flores por todos os lados. Via pombas brancas a, esvoaçar sem parar como se estivessem a dançar. Entretanto, paravam de dançar e uma pomba vinha-lhe pousar no ombro. Qual não era o seu espanto ao perceber que a pomba lhe falava e ela a percebia! A pomba dizia-lhe:
- Vem connosco ti’ Joana! Agora podes voar. Neste prado, não há frio, não há fome, não há tristeza e tudo é possível! Voa connosco. Vem, que nós levamos – te ao encontro de tua mãe. E ela respondia.
- Mas minha mãe, já morreu há tantos anos! - Então as pombas diziam:
-Ninguém morre. Apenas viajamos. Vem connosco! E ti’ Joana sorriu e voou com as aves.
No dia seguinte, Marianita levantara-se bem cedo e como planeara fora falar com D. Irene. Esta acedeu de imediato ao seu pedido e juntas dirigiram-se à igreja. Aí, encontrava-se já um pequeno grupo de pessoas junto ao vão da escadas, deixando escapar alguns lamentos de compaixão. Alguns inquiriam se alguém sabia se ti’ Joana tinha família. Marianita, de coração apertado aproximou-se. Deitada numa cama de sacos de lixo, aconchegada no sobretudo de Marianita, jazia ti’ Joana de sorriso radioso. Junto das suas flores, passeavam duas pombas brancas.
Nunca, ninguém conseguiu saber nada sobre ti’ Joana. Ninguém lhe conhecia família. Apenas sabiam que era a ti’ Joana que vendia flores à porta da igreja. Nesse dia ti’ Joana apareceu no jornal, fora publicada uma nota que dizia: “Faleceu durante esta noite a ti’ Joana que vendia flores junto á igreja. Desta forma pretendemos prestar a nossa homenagem.”.
Nesse dia, todos os que a conheciam lhe quiseram prestar homenagem.
Marianita inconsolável rezava. Pedia perdão por ter chegado tarde demais e desejava-lhe que ao menos agora tivesse direito a uma vida condigna.
Os dias passaram-se e tudo parecia voltar ao normal. Marianita começou então a reparar, que perto do sítio onde ficara a ti’ Joana naquela noite, existia um pequeno largo térreo, onde nascera uma roseira bravia. De dia para dia a roseira crescia e nasciam lindas rosas.
Um dia, quando Marianita ia a passar, uma pomba branca pousou-lhe no ombro. Quando olhou, reparou que esta trazia no bico, um botão de rosa bravia. E desde esse dia sempre que Marianita por ali passava, erguia os olhos tristemente para o céu e sorria, aguardando uma pomba branca que sempre lhe trazia no bico um botão de rosa bravia.
Flora Rodrigues
1999
Conto de ficção de minha autoria foto das fotos do sapo álbum de Aiaiai300