Vidas de Vidro...
Finalmente descobri o som e o cheiro de que tinha saudades. Afinal tudo o que nos contaram antes de sermos um só, era verdade. Eu conhecia a história, diziam que primeiro éramos filhos do Rocha e do mar que, impiedoso lhe batia e a obrigava a parir-nos na orla das suas ondas.
Mas eu nunca tinha visto nem a rocha, nem o mar, nunca tinha conhecido a minha mãe sofredora e o meu pai tirano e impiedoso. E, naquele fatídico dia ali estava eu, perante o meu imperioso pai e a minha majestosa mãe que lutava por se manter altiva na paisagem quebrando as ondas de fúria do meu pai.
Contavam também que depois o nosso pai a obrigava a abandonar-nos à nossa sorte. Alguns eram acolhidos por ele o mar, sendo arrastados para o fundo da vastidão do seu desconhecido mundo. Outros, ali permaneciam para sempre na orla do mar pai tirano, à vista da mãe rocha imponente, mas impotente, contra a tirania do mar.
Éramos minúsculos, insignificantes, pequenos grãos de areia espezinhado por pés humanos e patas de animais. Era humilhante. Afinal éramos filhos de dois gigantes. Mas filhos de dois gigantes que quer por vontade, ou por força das circunstâncias nos abandonaram à nossa sorte….
E mesmo sabendo disso, o cheiro de maresia, que, consigo mar trazia e o som das suas ondas que, ora batiam impiediedosas na rocha, ora a afagavam com meiguice e murmúrios impercetíveis, eram o som e o cheiro que me acompanharam toda a minha existência, desde que eu era um minúsculo grão de areia.
Um dia, uma garra de um estranho animal de ferro recolheu-nos e lançou-nos para um calor atroz, parecia que, do mar tínhamos sido lançados para o sol e deixámos de ser grãos de areia. Éramos uma massa incandescente. Pensei que nos tivessem lançado para o meio de um vulcão, daqueles que as gaivotas nos contavam existir e nos tínhamos transformado naquela massa incandescente e perigosa que deles saíam. Foi quando umas mãos humanas com um tubo e movimento rápido nos sopraram e arrefeceram e renascemos como como um só. Renascemos numa única criatura: num copo de vinho.
Inicialmente pensei que agora era mais forte, até que vi o que acontecia nas mãos de humanos descuidados: éramos quebrados e dispensados como se de nada importante se tratasse. Alguns tinham sorte eram postos numa caixa em que os faziam renascer num novo objeto. Mesmo assim não deixava de ser um sofrimento.
Mas, eu durante muito tempo tive sorte. Puseram-me numa caixa almofadada, diziam que existiam poucos com a minha forma e por isso era especial. Gostara quando a humana que abrira caixa sorrira. As mãos dela eram suaves. E quando os seus lábios tocavam as minhas extremidades, as minhas bordas, era como se me beijasse. E eu que tinha sido, rejeitado, espezinhado, derretido, transformado e nunca acarinhado, resplandecia de prazer e tinha um brilho único. Era como se o vinho cor de sangue com que ela banhava o meu corpo me desse vida e me embriagasse não só com o vinho, mas com a vida, com a sua presença.
O que mais me custava, era quando não era ela a pegar-me e permitia que outros lábios me tocassem, com mãos grosseiras, ásperas, pouco cuidadosas, com lábios ásperos , gordurosos, com bigodes farfalhudos que me agoniavam. E temia pela fragilidade do meu corpo naquelas mãos e noutras quando não era ela, quem me lavava.
Um dia nunca soube porquê, decidiu que o vinho só lhe sabia bem, se fosse eu, o seu copo. Não sei, talvez, o meu amor, a minha felicidade, se dissolvessem no vinho e a fizessem mais feliz.
Nesse dia toda a minha existência fez sentido.
Mas os anos passaram e sem que eu soubesse porquê, um dia, pegou em mim e chorando lágrimas sem fim, sorveu o último vinho rubro de sangue do meu corpo e tombou no chão inerte, sem vida. Ainda senti o calor da sua mão que me afagara tanta vez, mas esta entreabriu-se e rolei pela rocha, que reconheci ironicamente como a que me dera vida, e nela me quebrei em mil estilhaços.
Não fui levado para a caixa onde me fariam renascer noutro objeto. Hoje voltei a ser um grão de areia sovado pelo mar, socado pelo vento e espezinhado por pés de humanos e patas de animais. Mas as memórias de copo de vidro permanecem e ainda me enternecem.
Por vezes, quando o meu pai está no seus dias de meiguice, penso ouvir a sua voz, sentir as suas mãos e os seus lábios que me beijavam sorvendo o rubro liquido com que me inundava.
O vento contou-me que as suas cinzas foram espalhadas na vastidão do mar…