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Sopa De letras

Vinha à procura de sopa? Aqui há , mas só de letras! Letras atiradas ao acaso saídas de uma Caixinha de Pandora.

Vinha à procura de sopa? Aqui há , mas só de letras! Letras atiradas ao acaso saídas de uma Caixinha de Pandora.

Uma noite de chuva...



A chuva caía impiedosa sobre as ruas sombrias da cidade fria. A noite chegara escura e tempestuosa à cidade, indiferente à azáfama, daqueles que regressando do trabalho, corriam apressadamente para o reconfortante abrigo que eram os seus lares. Nas ruas, apenas se ouvia o som ritmado da chuva e o ulular do vento, formando uma estranha melodia, de certo modo reconfortante para aqueles, que se encontravam abrigados no seu lar., sentados à mesa com o jantar a fumegar.
     Pouco a pouco, foram-se acendendo as luzes na cidade, luzindo ao longe como estrelas caídas no chão!

 

     Marianita, junto da lareira não conseguia esquecer o quadro triste que assistira ao regressar da escola. Ainda não tinha anoitecido, quando iniciara o seu regresso a casa. Mas a chuva parecera enegrecer o entardecer. Marianita seguia sozinha nas ruas semi- desertas, onde apenas circulavam alguns transeuntes mais incautos apanhados de surpresa, que procuravam abrigar-se . Marianita caminhava observando, como a cidade se tornara deserta e hostil naquelas horas. Gostava de apreciar tudo o que a rodeava enquanto seguia o seu caminho. Como a sua casa ainda era distante da escola, distraía-se apreciando tudo o que via no caminho. As “vendedeiras” de rua (como o povo lhes chamava) gritando:

 

- Oh, Menina! Compre que é a cem! Meias de senhora para fazer a perna bonita!

 

- Quentinhas e boas! Castanhas assadas...Olháá castanha assada! –

 

Por vezes não resistia ao fumegar das castanhas, que lhe assaltavam o nariz, despertando-lhe a gulodice, e acabava por comprar o tradicional cartuchinho de castanhas feito de jornal. Entretinha-se então a comer as castanhas pelo caminho e quando terminava, por brincadeira ia ver que notícias vinham de “brinde” no cartucho das castanhas. No outro lado da rua, via uma mãe passeando carinhosamente o seu bebé, que mostrava com orgulho às amigas que encontrara por acaso. Via os lojistas darem os últimos retoques para o fecho das suas lojas. Pelas ruas da cidade ouvia-se falar de tudo um pouco: da vida que estava cada vez mais cara, das guerras intermináveis que todos os dias apareciam nos noticiários da televisão e nas páginas dos jornais; dos políticos que nada faziam e tudo prometiam; da doença estranha da vizinha; e uma infinidade de coisas triviais, mas que pareciam dar uma vida própria à cidade, como se estas fosse um quadro vivo. Pelo caminho via ainda algumas pessoas que passeavam o seu cãozinho ou cães que passeavam os donos, como lhe dissera uma vez um amigo, após assistirem a um aparatoso trambolhão de um dono que não conseguira segurar o seu cão! E Marianita ia pensando naquelas pessoas como personagens de um romance, que ela achava real. Pois não eram os romances, retratos fantasiados da vida?

 

         Mas naquele dia, não era nenhuma dessas imagens que lhe permanecia na mente. Era uma imagem bem diferente e bem triste. A vida na cidade, não torna de pedra só as paredes das casas, mas também o coração daqueles que a habitam. Habituados a conviver com as misérias da vida, as pessoas acabam por se habituar a lhes passar ao lado. Mas quando a miséria bate à porta daqueles que de alguma forma nos tocam o coração, algo muda e faz-nos recordar que afinal, somos humanos e não animais em luta pela sobrevivência numa selva de pedra.

 

  Marianita reparara ao passar pelas escadas da Igreja, que a Ti ‘Joana ainda aí se encontrava. Abrigada no vão das escada, embrulhada em sacos plásticos de recolher o lixo. Todos conheciam aquela velhinha que vendia flores junto à igreja. Todos sabiam quem era a Ti ‘Joana, mas poucos sabiam da miséria em que vivia.
        Ela tinha grande simpatia pela Ti’ Joana como todos os que a conheciam. Por vezes observava-a e ficava a pensar que deveria ter sido muito bonita na sua juventude, aquela velhinha. Pequenina, já encurvada pelo peso dos anos, de cabelos alvos, tez tisnada pelo sol e olhos redondinhos, muito vivos, brilhantes como safiras. Mas o que ela achava ainda mais bonito na ti’ Joana, era o seu sorriso radioso, que parecia aquecer o coração daqueles que por ela passavam.

 

   Todas as tardes passava por ali, e dava dois dedos de conversa com a ti ’Joana:

 

- Então ti’ Joana como vai?

 

- Cá estou minha flor, cá estou! E a menina como vai a sua escola? - Marianita respondia

 

- Ora, vai indo! Às vezes é difícil mas tem de ser! E a ti’ Joana sempre dizia:

 

- Estude minha flor, estude para ser alguém. Olhe que eu não pude e acabei aqui, a vender flores à porta da igreja, na minha velhice – e nisto levantava-se  e oferecia-lhe uma flor que ela não queria aceitar,( por compaixão), mas ti’ Joana insistia :

 

- Se não aceitar, fico triste consigo. Mais a mais, a menina tem-me comprado tantas, que essa não me deixa pobre. E agora vou arrumando, que me vou recolher! - Marianita beijava a face da velhinha em jeito de agradecimento e despedia-se:

 

 -Até amanhã ti’ Joana.

 

- Até amanhã se deus quiser, minha flor – respondia-lhe a ti’ Joana e sumia-se vagarosamente pelas ruas estreitas na traseira da Igreja.

 

                  Todos sabiam quem era a ti’ Joana que vendia flores na porta da Igreja todos a conheciam, mas muito poucos ou nenhuns sabiam da miséria em que vivia. Só naquela tarde chuvosa de inverno Marianita se apercebeu dessa situação.

 

- Ti’ Joana não vai para casa? Olhe que com esta chuva e sem agasalho fica doente!

 

- Oh, minha flor! Estou à espera que me venham avisar se há vaga no Albergue. Com esta chuva costuma estar cheio. Mas eu não pude ir lá mais cedo! – Marianita ficou espantada.

 

 -Albergue?! Então a ti’ Joana não tem a sua casa? - Perguntou admirada.

 

-Oh, minha flor! A pensão não dá para pagar uma renda e o que ganho com as flores, dá-me para comer e já pouco me sobra para o resto! – Muda de comoção, a rapariga sentiu as lágrimas a rolarem-lhe pela face abaixo. Mas para que, ti’ Joana não se apercebesse, retirou o guarda – chuva rapidamente e afastou o rosto, que molhado pelas lágrimas de chuva, disfarçava as lágrimas de compaixão. De seguida, retirou o sobretudo e num gesto espontâneo saído do coração, agasalhou com ele a velhinha que reclamava com Marianita para não o fazer. Mas esta respondeu-lhe:

 

-Agora quem fica triste consigo, se não aceitar sou eu! Eu já estou perto de casa! - E nisto abriu o guarda – chuva e pousou-o na mão de ti’ Joana para esta se abrigar dizendo-lhe ainda:

 

-Espero que consiga lugar no albergue depressa e que pelo menos esteja mais aconchegada, enquanto espera.

 

-Eu bem digo que você é uma flor – e puxando-a junto a si, cobriu-lhe o rosto de beijos, enquanto lágrimas rolavam pelo seu mimoso rosto enrugado. A rapariga deu-lhe um beijo no rosto e desprendeu-se suavemente.

 

-Agora tenho que ir depressa, por causa da chuva! – Desculpou-se e desatou a correr sem parar, numa ânsia desenfreada de chegar a casa. As lágrimas corriam-lhe incontrolavelmente pelo rosto. Ia tão triste, tão chocada, que já nem sentia a chuva, nem distinguia as suas lágrimas das gotas da chuva. Sentia-se sem forças para lutar contra aquela miséria. Se a casa fosse dela, mais que não fosse aquela noite, a Ti’ Joana teria cama, comida e roupa lavada. Mas a casa não era sua, era de seus pais e estes austeros como o eram não o permitiriam. Quando chegasse a casa teria de dizer que se tinha esquecido do sobretudo em casa de uma amiga, onde fora lanchar que se esquecera dele na escola, alguma desculpa arranjaria. Mas não foi preciso. Ninguém a viu chegar, e quando a viram, junto à lareira, já tinha tomado banho e encontrava-se de roupão e chinelos. Mas naquele momento, não era o facto de ter dado o sobretudo que a preocupava. Não conseguia tirar da sua mente a imagem da ti’ Joana, tão velhinha, tiritando de frio, mal abrigada da chuva e do vento, na iminência de passar uma noite ao relento. Um rodopio de pensamentos assaltava-lhe a mente constantemente. Ti’ Joana não teria família? Filhos, sobrinhos? Alguém que a acarinhasse na sua velhice? E pensando nisto tudo, ficava cada vez mais triste. A ideia de tentar ajudar aquela velhinha não lhe saía da ideia da cabeça. Mas que poderia fazer ela com os seus dezoito anos e sem recursos próprios? De repente teve uma ideia! Iria falar com D. Irene, a sua vizinha. Sabia que ela era assistente social e tinha e especial simpatia por este tipo de situações. De certeza que iria fazer alguma coisa. Era isso! Amanhã, bem cedinho iria juntamente com D. Irene falar com a ti’ Joana e veriam como a poderiam ajudar. Mas a imagem de ti’ Joana dormindo ao relento naquela noite fria e chuvosa, não lhe saía da cabeça.

 

           Perto de sua casa, junto à igreja continuava Ti’ Joana, que rodeada das flores que sobravam e aconchegada pelo sobretudo de Marianita, se deixara dormir, vencida pelo cansaço dos anos. E sonhava. Tinha sonhos lindos. Sonhava com uma cama quentinha, com lençóis de linho. Sonhava que Marianita vivia com ela e a beijava antes de adormecer. Depois o sonho mudava. Sonhava com flores. Sonhava que estava num prado imenso rodeada de flores por todos os lados. Via pombas brancas a, esvoaçar sem parar como se estivessem a dançar. Entretanto, paravam de dançar e uma pomba vinha-lhe pousar no ombro. Qual não era o seu espanto ao perceber que a pomba lhe falava e ela a percebia! A pomba dizia-lhe:

 

- Vem connosco ti’ Joana! Agora podes voar. Neste prado, não há frio, não há fome, não há tristeza e tudo é possível! Voa connosco. Vem, que nós levamos – te ao encontro de tua mãe. E ela respondia.

 

- Mas minha mãe, já morreu há tantos anos! - Então as pombas diziam:

 
 

-Ninguém morre. Apenas viajamos. Vem connosco!
E ti’ Joana sorriu e voou com as aves.

 

       No dia seguinte, Marianita levantara-se bem cedo e como planeara fora falar com D. Irene. Esta acedeu de imediato ao seu pedido e juntas dirigiram-se à igreja. Aí, encontrava-se já um pequeno grupo de pessoas junto ao vão da escadas, deixando escapar alguns lamentos de compaixão. Alguns inquiriam se alguém sabia se ti’ Joana tinha família. Marianita, de coração apertado aproximou-se. Deitada numa cama de sacos de lixo, aconchegada no sobretudo de Marianita, jazia ti’ Joana de sorriso radioso. Junto das suas flores, passeavam duas pombas brancas.

 

          Nunca, ninguém conseguiu saber nada sobre ti’ Joana. Ninguém lhe conhecia família. Apenas sabiam que era a ti’ Joana que vendia flores à porta da igreja. Nesse dia ti’ Joana apareceu no jornal, fora publicada uma nota que dizia: “Faleceu durante esta noite a ti’ Joana que vendia flores junto á igreja. Desta forma pretendemos prestar a nossa homenagem.”.

 

  Nesse dia, todos os que a conheciam lhe quiseram prestar homenagem.

 

        Marianita inconsolável rezava. Pedia perdão por ter chegado tarde demais e desejava-lhe que ao menos agora tivesse direito a uma vida condigna.

 

             Os dias passaram-se e tudo parecia voltar ao normal. Marianita começou então a reparar, que perto do sítio onde ficara a ti’ Joana naquela noite, existia um pequeno largo térreo, onde nascera uma roseira bravia. De dia para dia a roseira crescia e nasciam lindas rosas.

 

     Um dia, quando Marianita ia a passar, uma pomba branca pousou-lhe no ombro. Quando olhou, reparou que esta trazia no bico, um botão de rosa bravia. E desde esse dia sempre que Marianita por ali passava, erguia os olhos tristemente para o céu e sorria, aguardando uma pomba branca que sempre lhe trazia no bico um botão de rosa bravia.

 

 

 

Flora Rodrigues

 

1999

  Conto de ficção de minha autoria
foto das fotos do sapo  álbum de Aiaiai300

Canção da meia-noite.

                                    
               Eu sou onda do mar 
               que, contra as rochas 
               
vai rebentar.
                Eu sou gota de água,
                que, ao rio vai parar.
                Eu sou brisa passageira,
                sou perfume efémero no ar,
                sou ave que se esqueceu de voaar.
                Eu sou a noite ligeira,
                que se esqueceu de acordar.
                Sou o sol que,

                se esqueceu de brilhar, 
                sou labareda de fumo 
               que, se espalha no ar;
               Sono que se esqueceu de sonhar.
               Vida que se esqueceu de viver. 
               Lágrima que não quis cair, 
               fonte que se esqueceu de jorrar. 
               Sou sol, sou nuvem no céu a brincar 
               sou apenas,
               Vento que vai a passar.

  
Fotografia gentilmente cedida por João Palmela

 

 

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